Carta a um jovem Jornalista

(Este artigo surge na sequência de várias notícias surgidas sobre uma entrevista feita por Afonso de Melo a Deco e publicada no passado dia 9 de Fevereiro na revista Luz do jornal Sol. Fala da forma como hoje se vvai buscar informação a outros órgãos de Comunicação e muitas vezes sem citar a fonte. O CNID gostaria de receber outras opiniões sobre este tema, de jornalistas ou até não jornalistas, de forma a debater a questão. Sintam-se convidados a darem a sua opinião) 

Por Afonso de Melo

Aeroporto de Barajas, 14 de Fevereiro de 2024

Enquanto espero pela ligação que me levará até Lisboa depois de uma semana de trabalho na Arábia Saudita, passo os olhos sobre as notícias online e pelos pdfs dos jornais desportivos portugueses. No espaço de menos de 15 minutos deparo-me com:

– explicou Carragher à Sky Sports

– segundo informações veiculadas pelo Manchester Evening News

– segunda adianta o portal britânico Football Insiders

– a notícia é avançada pelo diário espanhol As

– de acordo com o The Sun

– o Mundo Deportivo avança

– de  acordo com o portal Sport Bible

– citado pela BBC

– de acordo com o diário Sports

– o Sports refere que

– de acordo com o Globo Esporte

– segundo a Catalunya Radio

– segundo conta a Sky Sports

– de acordo com o que conta o jornalista Fabrizio Romano

(aqui acrescento que não percebo porquê e quando surgiu esta figura meio sinistra que se auto intitula especialista em transferências de jogadores)

Confesso: fico estupefacto! Desde quando jornais e jornalistas são fontes de informação? Desde quando um jornalista se senta à secretária a roubar (não encontro palavra melhor) as notícias dadas por companheiros de profissão? Antes de vir para a Arábia estive em Barcelona com o Deco. Somos amigos há mais de vinte anos, fui assessor de imprensa na selecção nacional (e, sublinho, entreguei a minha carteira de jornalista enquanto cumpri essa função e fiz, como manda a deontologia, dois anos de nojo depois da minha saída dessas funções, dois anos durante os quais não escrevi sobre a selecção), conversámos bastante até porque não estávamos juntos há muito tempo. Fiz com ele uma entrevista que foi publicada na revista Luz do jornal Sol (oito páginas) para o qual trabalho. Uma entrevista frente a frente, cara a cara, não por telefone ou por mail.

Solicitou-me o Manuel Queiroz, presidente do CNID, que anda no jornalismo mais ou menos ao mesmo tempo do que eu, que escrevesse este texto. Não o entendam, pelo título, como algo de paternal, nem isso faz o meu estilo. Remete para uma obra universal de Reiner Maria Rilke: Carta a um Jovem Poeta. Carta essa dedicada a um soldado chamado Franz Xaver Kappus. Rilke aconselhava-o a prosseguir a vida com uma conduta norteada pelo rigor e pela integridade e por uma independência sem concessões. Se eu tivesse algo a dizer a um jovem jornalista, mesmo sabendo que não me ouve, diria como Rilke: «Não te deixes anular pela multidão; diz não sempre que sentires que é isso que te vai na alma; não deixes que te amarrem a uma secretária a copiar palavras alheias». O jornalismo é como o futebol de Drummond de Andrade: faz-se na rua; faz-se na alma. Começa dentro de nós mesmos como uma vontade incontrolável. E se fores atrás dela saberás que é par isso que foste feito. E, como dizia o Vítor Santos, emérito Chefe de Redacção de A Bola: «Pensa no leitor em primeiro lugar porque é ele que te dá de comer».

O Vítor Santos recebeu-me n’A Bola, por mão do meu querido Joaquim Rita, no final dos anos-80, com estas palavras: «Dizem-me que tens talento. As páginas de A Bola estão abertas para provar que as mereces». Nesta Carta ao Jovem Jornalista acredito que muitos não saberão sequer o que isto significa. Outros tempos – tempos dos mestres. Nessa fase da minha vida já tinha trabalhado com gente de nome enorme noutros jornais – Victor Cunha Rego, Eduardo Gageiro, Peixe Dias, Fernando Assis Pacheco. Como eu, o João Bonzinho, o Rui Dias, ligeiramente mais tarde o António Magalhães, subimos ao segundo andar do número 23 da Travessa da Queimada com as pernas a tremer de entusiasmo, convencidos de que seríamos a grande geração que substituiria a geração dos nomes inconfundíveis: Vítor Santos, Carlos Pinhão, Alfredo Farinha, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Homero Serpa, Cruz dos Santos, Álvaro Braga Júnior… Éramos jovens, tínhamos direito a sonhar. Só não tínhamos o direito de os envergonhar.

A primeira vez que sugeri ao Carlos Pinhão citar algo que tinha sido publicado num jornal estrangeiro, salvo erro La Gazzetta dello Sport, recebi a resposta merecida: «Mas tu queres ser um repórter ou um recórter? Pega no telefone e vai confirmar as fontes».

Já o Vítor Santos tinha uma frase mais direta de cada vez que caíamos na tentação do facilitismo: «Mas tu julgas que istoi é o PIM-PAM-PUM?»

  • A primeira vez que sugeri ao Carlos Pinhão citar algo que tinha sido publicado num jornal estrangeiro, salvo erro La Gazzetta dello Sport, recebi a resposta merecida: «Mas tu queres ser um repórter ou um recórter? Pega no telefone e vai confirmar as fontes».

Confesso que senti o meu trabalho vandalizado (falo ainda da entrevista feita ao Deco quando topei com descaramento de um dos nossos jornais, não importa qual, neste momento o cancro está generalizado como demonstrei logo de início, abriu uma página online dizendo: «Deco: Ruben Amorim joga com um estilo parecido com o Barcelona mas tem muito pouca experiência». Não! Não foi isso que o Deco disse. Ainda chocado, enviei para o CNID esta reclamação: «Infelizmente tornou-se hábito na imprensa portuguesa simplesmente roubar nacos de reportagens ou entrevistas feitas por outros jornalistas noutros jornais. Este é um bom exemplo da forma como se transformou uma frase banal de uma entrevista de oito páginas numa barulheira sem qualquer sentido. A entrevista foi feita por mim, tenho 40 anos de profissão, sei que títulos escolher e não foi por acaso que não escolhi este que, de momento, me está a dar problemas profissionais com pessoas que merecem todo o meu respeito e têm respeito por mim. Quem autorizou esta publicação??? Não eu! Não o jornal Sol! O jornal que me paga, aliás, já que não sou pago por aquilo que os outros fazem do meu trabalho.

  • Senti o meu trabalho vandalizado (falo ainda da entrevista feita ao Deco) quando topei com descaramento de um dos nossos jornais, não importa qual, neste momento o cancro está generalizado como demonstrei logo de início, abriu uma página online dizendo: «Deco: Ruben Amorim joga com um estilo parecido com o Barcelona mas tem muito pouca experiência». Não! Não foi isso que o Deco disse

A que propósito os jornalistas (???) se acham agora no direito de publicar matérias alheias sem sequer prestarem contas aos autores? Quem se responsabiliza agora por o assunto ter sido descontextualizado? Quem regula esta pouca vergonha que se tornou simplesmente o dia a dia de gente que não devia ter sequer direito à carteira profissional? Espero que esta reclamação não caia em saco roto. O caminho é perigoso e põe muitas pessoas em causa. Este caso está a criar problemas ao Deco, em Espanha, e a mim por via da relação que tenho com ele. Como explicar agora que a frase se fosse verdadeiramente importante no contexto teria sido, obviamente, usada por quem escreveu e editou a entrevista. Ou agora os outros decidem por nós o que deve ou não deve ser tornado o centro de uma entrevista?»

E assim chegamos ao momento em que, no aeroporto de Madrid, me deparo com o esbulhar puro e duro de tudo quanto é informação de outros, pura e simplesmente recortada à medida de, como diria o Pinhão, um bom recórter. É isso que queremos nos nossos jovens jornalistas? Que sejam recórteres? Que sejam ensinados a espoliar sem o mínimo de pudor o trabalho alheio, sem sequer terem o cuidado de procurar confirmar as fontes, solicitar a permissão das citações, respeitar minimamente a verdade das frases proferidas?

  • A que propósito os jornalistas (???) se acham agora no direito de publicar matérias alheias sem sequer prestarem contas aos autores? Quem se responsabiliza agora por o assunto ter sido descontextualizado? Quem regula esta pouca vergonha que se tornou simplesmente o dia a dia de gente que não devia ter sequer direito à carteira profissional?

Viajei para a Arábia Saudita. Como já referi, a entrevista com o Deco saiu na sexta-feira dia 9 de Fevereiro. Entretanto, porque achou que as suas palavras pudessem ser mal entendidas (tínhamos acabado de sair de Montjuic, Xavi afirmara que era preciso mudar muito no Barcelona e Klopp acabara de dizer que não continuaria no Liverpool), ele ligou-me para corrigir uma frase – uma única frase numa entrevista de oito páginas. A correção foi feita, mas já não a tempo de sair no papel, saindo no online com nota respetiva – e com a entrevista completa também no online já com a correção devida). Meia hora após o empate do Barcelona em casa com o Girona, um jornal catalão foi recuperar a versão original da entrevista, ignorou a nota de correção, e abriu uma guerra com a ideia de que Deco queria alterar toda a filosofia do Barça e o seu estilo de futebol. Choveram telefonemas em Riade. Três dias depois de o assunto ter sido revisto e reposto. Pelo que percebi, em Portugal ninguém se interessou. Estavam mais preocupados em dizer que o Deco não queria o Ruben Amorim do que na filosofia no tiki-taka, o que é natural mas absolutamente falso.

Vamos ser práticos: entrámos  num caminho perigoso. Muito perigoso. Estamos numa fase em que se distorce a realidade e vale mais uma caixa a três (como se dizia no meu tempo) do que uma entrevista de vida. Com sinceridade começo a questionar-me se vale a pena fazer uma grande reportagem ou uma grande entrevista se, no final, ficará apenas a boiar a porcaria de um registo mal copiado. Volto a um dos meus queridos mestres, Alfredo Farinha. Leiam-no com atenção: «Quando comecei a escrever em jornais, o meu propósito, a minha ambição, o meu sonho, era ser jornalista da Grande Imprensa. Ir à procura da vida no meio da vida, ir ao encontro dos acontecimentos onde eles acontecessem, conhecer os problemas dos homens, devassar o segredo das coisas desconhecidas, saber as razões dos êxitos e dos fracassos da grande sociedade, ouvir os políticos falarem de política, os economistas de economia, os artistas de arte, descrever os contrastes entre os dramas da fome e os esplendores da opulência, contar as histórias verídicas da paz e da guerra – e analisar, comentar, criticar tudo o que visse e ouvisse, com lealdade, com verdade, com o desejo de esclarecer e de ser útil». Nunca li, em qualquer outro lado, uma tão bela declaração de amor a uma profissão que merecia não ter sido abastardada, vilipendiada por dentro, suicidária. Façamos a pergunta a nós próprios e tentemos responder: estamos num universo de lealdade e de verdade?; somos capazes de esclarecer? Seremos úteis?» Sim. Termino com esta pergunta perturbadora: estamos verdadeiramente a esclarecer e a ser úteis? É que se não o formos mais vale desistir daquela que podia ser uma das mais bela profissões da Humanidade. Já não falo por mim, à beira da reforma, falo à alma dos jovens jornalistas e à consciência de quem os conduz. Que não lhes ensinem o caminho do precipício.