Nos 50 anos do 25 de Abril, desporto e mais (1)
Na passagem do ano de 1972 para o ano de 1973, um grupo de 91 católicos juntaram-se no Rato para a missa – e, depois dela, deixaram-se ficar pela capela a «orar, jejuar e refletir sobre a guerra de África». Para que se lhes vincasse a rebeldia, afixaram-se papeletas com números de mortos em combate, imagens de populações dizimadas e estropiados de ambos os lados e clamores soltos em lamentos e desconcertos, destroços e terrores – e tudo isso haveria de inspirar a Cantata da Paz de Sophia de Mello Breyner:
Vemos, ouvimos e lemos/ Não podemos ignorar.
De escantilhão entrou a polícia na capela que o Marquês da Praia (avô de Duarte Borges Coutinho, por essa altura presidente do Benfica) mandara construir no seu palacete e doara ao Patriarcado de Lisboa após a morte de Maria Francisca, a filha que se tornara condessa de Cuba – e, como ninguém arredou pé, uns foram levados para esquadra ao lado, outros atirados para Caxias.
De uma coisa e da outra se livrou Alberto Neto, seu pároco, porque uma broncopneumonia o jogara à cama, de véspera: «Estava, claro, ao corrente de tudo e de tudo dei conhecimento ao senhor Patriarca». Mesmo assim o padre Alberto teve de «ir ao suplício da António Maria Cardoso» (a sede da PIDE que, com Marcello Caetano no lugar de Salazar, passara a denominar-se Direção Geral de Segurança, DGS) – e quando percebeu que «da tortura psicológica se preparavam para saltar para a tortura física», avisou os torcionários:
– Tudo o que aqui me fizerem direi no altar!
Três dias volvidos, Alberto Neto sofreu acidente de automóvel de que saiu com perna partida (para seis meses em convalescença): «Extenuado do intenso interrogatório na DGS, essa foi a causa do desastre».
CONTRA A VIGÍLIA, O ULTRA QUE FOI PRESIDENTE DO SPORTING
Filho de dois professores primários, Alberto Neto Simões Dias nascera, por fevereiro de 1931, em Souto da Casa, no Fundão. Estudou nos seminários do Patriarcado de Lisboa, de Santarém, de Almada e dos Olivais. Ordenado em agosto de 1957, iniciou o trabalho sacerdotal nos Jerónimos, como coadjutor do padre Felicidade Alves (que, ao descobrir-se simpatizante comunista seria de lá afastado pelo Cardeal Cerejeira) – logo se notando pelo frenesim com que puxava os seus jovens à prática de atividades desportivas também.
Professor no Liceu D. João de Castro e no Liceu Pedro Nunes, por entre o rol dos seus alunos passaram Francisco Louçã e Marcelo Rebelo de Sousa e fora dos Jerónimos que o padre Alberto saltara da Capela do Rato, salpicando as suas homilias com «a denúncia das injustiças e o alerta das consciências» – ou aquilo que Jorge Wemans resumiria assim: «Não fundou obra, escola, partido, seita. O padre Alberto Neto limitou-se a viver e a viver a sério. A sua liberdade era um contágio de esperança e confiança. Um profeta com palavras de poeta. Um homem excecional».
Condenada a vigília do Rato pelo Cardeal-Patriarca, D. António Ribeiro. o governo de Marcello Caetano espalhou pelos jornais nota cheia de diatribes contra os manifestantes, acusando-os de «subversão e traição à Pátria», a hipócrita dialética do costume. Com Alberto Neto afastado da capela e demitidos todos os funcionários públicos que na vigília participaram, o Rato entrou, brusco, por São Bento dentro.
Francisco Cazal-Ribeiro fora presidente do Sporting e da FPF (a federação deixara-a em 1969, quando, em Angola, lhe morreu um filho, na guerra) e era a a voz dos ultras do regime na Assembleia Nacional (para além de comandante da Força Automóvel de Choque na Legião, talvez o seu mais brutal batalhão) – e, sendo cada vez mais um dos rostos da ala mais radical do salazarismo na Assembleia Nacional, envolveu-se, no parlamento, numa acirrada discussão com Miller Guerra (deputado da Ala Liberal, tal como Francisco Sá Carneiro e José Correia da Cunha, então presidente da Federação Portuguesa de Atletismo) que lamentara, em pleno hemiciclo, a ação policial contra quem «rezava na capela» e a campanha de «demonização» do seu padre…
DA CONQUISTA DA TAÇA DAS TAÇAS AOS DIPLOMAS INCENDIÁRIOS
Quando (a 27 de setembro de 1968) Marcello Caetano substituiu António Oliveira Salazar na Presidência do Conselho, puxou o general Horácio José de Sá Viana Rebelo para seu Ministro da Defesa Nacional. Admitido sócio do Sporting em outubro de 1944, acabara de ser promovido a capitão do exército e, para além de engenheiro e professor da Academia de Altos Estudos Militares, tornara-se membro da Junta Central da Legião Portuguesa. Um ano depois, fizeram-no deputado da União Nacional, pelo parlamento andara até 1950 – e uma das mais emotivas intervenções de Sá Viana Rebelo em São Bento foi para repudiar as «notícias tendenciosas publicadas nos jornais estrangeiros» sobre o estado do Estado Novo. Salazar gostou tanto que o chamou para o governo, deu-lhe o cargo de subsecretário de estado do Exército. Passara de tenente-coronel a coronel – e, entre 1956 e 1959, fora governador-geral de Angola. No regresso de Luanda, subira a brigadeiro e voltara ao Instituto de Altos Estudos Militares e à Academia Militar. Fora lá, quando estava como professor do curso de Estado-Maior, que foram convencer Sá Viana Rebelo a assumir a presidência do Sporting, a presidência a que vários outros ilustres foram fugindo, apesar de desafiados. Tomaria posse a 10 de abril de 1963, assumindo que aceitaria apenas um mandato, o qual terminou a 29 de maio de 1964 porque o prolongaram por um mês para que ainda pudesse ser presidente do Sporting no dia em que o Sporting jogasse a final da Taça das Taças, que ganhou aos húngaros do MTK no cantinho do Morais…
Por altura da posse de Horácio de Sá Viana Rebelo como Ministro da Defesa Nacional, pelos teatros de guerra nas colónias espalhavam-se 117 684 homens: 58 230 em Angola, 36 615 em Moçambique e 22 839 na Guiné. Apesar de os verdadeiros números serem «segredo de estado» – estimava-se que pudesse haver já mais de 5000 baixas (e entre os mortos estavam, por exemplo, um dos filhos de José Szabo, o treinador mais ganhador do Sporting, e um dos filhos de Francisco de Cazal-Ribeiro, que, sendo, como Góis Mota, um dos líderes da Legião, fora presidente do Sporting entre 1957 e 1958 e presidente do Conselho Fiscal durante o mandato de Sá Viana Rebelo).
Num sinal do que já se dizia que era a «primavera marcelista», desatou-se rumor de que Caetano cogitava lançar Sá Viana Rebelo como candidato a Presidente da República (para se desfazer de Américo Tomás) – e, em vez disso, Sá Viana Rebelo tornou-se vítima do Movimento de Capitães que haveria de levar à Revolução: decretos que assinara favorecendo o acesso de oficiais milicianos ao Quadro Permanente deixaram as forças armadas em polémica atiçada e na ânsia de apagar-lhe o crepitar, Marcelo Caetano deu à contestação a sua cabeça (forçando a sua demissão a 7 de novembro de 1973).
Semanas depois, o Expresso mandou ao Exame Prévio (como passara adesignar-se a Comissão de Censura) notícia que dizia: «O general Horácio de Sá Viana Rebelo, que, até à última remodelação ministerial, ocupou o cargo de ministro da Defesa Nacional, será em breve nomeado para o Conselho de Administração da Companhia Portuguesa de Electricidade. Engenheiro, o general ocupará, provavelmente, a presidência» – e a determinação do censor de serviço foi «não sair nada». Como não pôde sair outra notícia que ia no rol: «Uma manifestação de características invulgares teve ontem lugar no liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, onde cerca de 600 das jovens alunas se reuniram num meeting de protesto pela detenção de uma sua colega». (Essa percebia-se, claro…)
O PADRE JÁ ESTAVA NO SPORTING E A PIDE JULGAVA QUE A GNR ESTAVA FIXE
Sem que o Movimento das Forças Armadas esfriasse as suas conspirações, como Vasco Lourenço (que haveria de tornar-se igualmente figura grada no Sporting) fora parar à prisão na sequência do falhado Golpe das Caldas, indicara-se Otelo Saraiva de Carvalho para o comando do que se decidira imparável: a revolução (que se apontou para a madrugada de 25 de abril). Hugo dos Santos (que haveria de tornar-se figura grada do basquetebol, dando-se-lhe o nome à Supertaça) batera à máquina o programa que Melo Antunes escrevera à mão e a proclamação para ser lida aos microfones de uma rádio a escolher.
Ao tomar posse como presidente do Sporting, João Rocha puxara o padre Alberto Neto (já afastado da capela do Rato) de responsável pelo futebol juvenil para responsável pelo futebol profissional e, ao chegar-se ao dia 24 de abril, ficou o seu Sporting a um golo da final da Taça das Taças. Por essa altura, tinha a FPF um diretor chamado Marcelo Rebelo de Sousa que o revelaria (a Alexandra Tavares Teles para o Notícias Magazine):
– Indo ver o jogo do Sporting na RDA a casa de um amigo que morava junto ao estádio do Belenenses, no final do jogo, peguei no meu carro, um Fiat 127 branco, e regressei ao Expresso. O fecho dava um trabalhão porque o jornal estava sujeito à prova de página – mandar ao Exame Prévio, à censura, textos e imagens, títulos, publicidade. Saindo de lá por volta das cinco da manhã, ao cruzar o Marquês, apercebi-me de movimentos militares.
Tendo o Sporting empatado 1-1 em Alvalade, em Magdeburgo perdeu por 2-1 – o golo que lhes faltou levou a que cada um dos seus jogadores perdesse 50 contos, prémio de passagem à final. (Um Fiat 127 como o de Marcelo custava 94 contos e se os salários dos professores andavam pelos três contos e meio, de «luxo» eram os ordenados dos capitães do exército que fossem em missão para o Ultramar: 14 contos.)
Indo a caminho da sua casa Marcelo Rebelo de Sousa (cujo pai, Baltazar Rebelo de Sousa, era Ministro das Corporações, o Ministro das Corporações que permitira que os jogadores de futebol tivessem Sindicato legalizado desde que Jorge Sampaio, o advogado oposicionista que lhe fizera os Estatutos, seu advogado não fosse…) – Fernando Silva Pais (director da PIDE-DGS cujo irmão fora presidente do Barreirense) ligou, para a casa de Marcelo Caetano, sem esconder a aflição:
– Senhor Presidente, a Revolução está na rua! O caso é muito grave…
e, recomendando-lhe que fosse para o quartel do Carmo em busca de refúgio, murmurou-lhe:
– É que a GNR está fixe!
O PRESIDENTE DO FC PORTO QUE SAIU DE ELEIÇÕES DIFERENTES DAS FARSAS DE SALAZAR
Em 1953, fizeram-se no País eleições como já era timbre: mais ou menos em farsa. Cartazes da União Nacional diziam que Votar Com Salazar É Garantir a Paz e o Pão – e apanhando-a a remexer caixotes do lixo em busca de comida para os filhos, fora presa viúva no Porto. A Maria Joaquina da Silva Teixeira levaram-na ao Tribunal de Polícia por a encontrarem palmilhando ruela de pé nu:
– Era só um, Sr. Dr. Juiz, andava doente dele…
lamuriou-se e, levantando-se do banco dos réus, mostrou-lhe duas feridas ainda a lazará-lo. O magistrado, sem desarmar a compostura, exclamou-lhe (a tocar para o jocoso):
– O que vejo é que está sujo… e se tem o pé doente mais uma razão para andar calçada…
e despachou-lhe a condenação com multa de 16 escudos e 50 centavos e mais 50 escudos pelo «mínimo de imposto de justiça».
O Benfica contratara Otto Glória para seu treinador, pagando-lhe 12 contos por mês. Baptista Pereira ganhara a Travessia da Mancha – e no intervalo dos treinos e do trabalho numa fábrica de cimentos a 26 escudos por dia ainda se aventurava a distribuir, clandestino, o Avante.
Indo Urgel Horta para deputado da União Nacional indicou para seu sucessor na presidência do FC Porto, Abel Portal. Não o aceitando, Cesário Bonito lançou-se à corrida como «candidato de oposição», logo se lhe ouvindo com audácia: