Nos 50 anos do 25 de abril, desporto e mais (4)
Por António Simões
Vitória sobre o FC Porto (com André Villas-Boas e Jorge Nuno Pinto da Costa a vê-lo) deu ao Benfica a Taça Hugo dos Santos (no ano dos 50 anos sobre o 25 de Abril) – e o que aqui se vai contar é porque Hugo dos Santos deu o nome à Taça da Liga de Basquetebol e o que ele teve a ver com a revolução que desfez a Ditadura em Portugal…
Quando o Movimento das Forças Armadas se lançou à ideia de acabar com o velho e trôpego Estado Novo, Portugal já não era o regime cujo chefe fazia do chapéu o seu principal símbolo social ou que por causa das suas marcas fechavam as suas fronteiras aos Opel Ascona, aos camiões Phoden, às máquinas Kona Coffee.
Também já não era o país em que o governo lançava outras ridículas proibições (como, por exemplo, o uso do biquíni ao jeito da foto que aqui poder levar a multa de 5000 escudos quando, por exemplo, Eusébio recebia 4000 de ordenado no Benfica) ou o embaixador Porras y Porras ficara sem agrément por Salazar ter murmurado, sibilino, ao seu Ministro dos Negócios Estrangeiros:
– Não, não é só pelo nome, é pela insistência, por isso veja lá…
mas, podendo, voltar a fazer-se (por graça da morte de Salazar) concursos de Misses, a Miss Portugal de 1971 foi consagrada com fato de banho de peça única (como a lei ainda determinava em nome da moral e dos bons costumes) – e sendo ela, a Riquita, filha de um diretor do Sporting de Moçâmedes, o Sporting (de Lisboa) deu-lhe a toda a primeira página do seu jornal.
Continuando ainda Portugal (já com Marcello Caetano) a ser o país em que se excluíam matrículas de automóveis começadas por CU, era com mais circunspeção (ou insídia a disfarçar-se…) que os Coronéis do Lápis Azul (que deixando de ser da Comissão de Censura passara a ser no seu eufemismo o Exame Prévio…) telefonavam para as redações dos jornais, sugerindo coisas assim: «O senhor Diretor-Geral da Informação pede o favor que não se dê a notícia de um acaso ocorrido em Aldeia do Bispo, Penamacor: duas crianças, por causa de uma bicicleta, matarem uma terceira».
NA PONTINHA, DE JANELAS TAPADAS
Sim, ainda era assim naquele dia 20 de abril de 1974 em que, numa residência escondida entre Oeiras e Cascais, Otelo Saraiva de Carvalho terminou a distribuição das missões para a revolução – e Hugo dos Santos bateu à máquina o programa do MFA que Melo Antunes escrevera à mão e a proclamação para ser lida aos microfones de uma rádio qualquer. (Foi no Rádio Clube Português e, na véspera do combinado dia 25 de Abril, Vasco Gonçalves ainda sem sinal do estalinismo que o atiraria para os frenesins e os escarcéus do PREC antes pelo contrário, não deixaria de largar, subtil, sinal de descrença a Vítor Alves:
– Ah! Se o Movimento conseguisse ganhar, como era bom daqui por uns dois anos, termos uma social-democracia em Portugal! Mas isto é muito difícil, sabe? Os tipos têm um aparelho muito forte…)
Não, não foi com esse toque de ceticismo que, ao cair da noite de 24 de abril, se montou no Regimento de Engenharia 1, na Pontinha (num pré-fabricado que servia de arrecadação do quartel com as janelas tapadas com cobertores) o «centro de comando do Movimento das Forças Armadas», juntando-se a Hugo dos Santos e a Otelo Saraiva de Carvalho Garcia dos Santos, Sanches Osório, Luís Macedo, Fisher Lopes Pires e Victor Crespo.
PROIBIDOS CASAMENTOS E MAIS…
Fora a 17 de julho de 1933 que Hugo Manuel Rodrigues dos Santos nascera em Oliveira do Hospital, filho de um viajante que cirandava pela Beira Alta a vender produtos de armazém comercial – e por pouco não perdeu o sonho a que se aconchegara desde pequenino:
– O meu pai adoeceu, eu andava no sétimo ano. Para ajudar à família que era modesta eu estava para interromper a escola, ir trabalhar para o Congo Belga. Esperava a carta de chamada quando familiares de Tomar ao saberem do meu gosto, disseram que me comparticipavam os estudos. Frequentar a Escola do Exército era caro, o enxoval era todo pago por nós e para além do enxoval, tudo o que utilizávamos: da cama ao colchão, dos pratos aos talheres…
Para a Escola do Exército entrou 1952 – e logo se lhe notou «tremendo o jeito para o desporto» – no voleibol, no andebol e, sobretudo, no basquetebol. Por entre a formação militar entrou na fundação do CDUL, no CDUL se tornou «desportista brilhante» e, pelo caminho, foi-se-lhe espicaçando o espírito de oposição a Salazar que já notara no pai (sempre em cuidado e secretismo), insinuando-se-lhe também o caráter destemido, a personalidade vincada:
– Foram, porém, as eleições do general Delgado em 1958 que mexeram comigo, mais mexeram comigo, nesse sentido. Santos Costa era o Ministro da Defesa e tinha paixão pela Académica que se apoiava muito em facilidades através dele. Havendo necessidade de um treinador de basquete evoluído, não esteve com meias medidas: arranjou um capitão do exército americano na Alemanha. Mas para tapar o aspeto de favor, pensou num curso de treinadores para militares. Eu fui um dos que mandaram para o Regimento de Infantaria de Coimbra fazer o curso. A certa altura, o comandante chamou-nos e disse: «Têm que ir votar». E queria que fossemos com documentos que não correspondiam ao nosso nome e levássemos a lista que se imagina… Eu marquei logo uma posição: com falsidades não vou – e não fui. Fui sempre assim.
Por esse tempo também o casamento de uma professora tinha de ser autorizado por despacho no Diário do Governo – e, para tal, os noivos tinham de apresentar dois atestados: um de «bom comportamento moral e cívico» e outro a garantir que como futuro marido de professora auferia um ordenado superior ao da mulher ou possuía meios suficientes para a sustentar». Para militares havia igualmente regras e normas, impedimentos e proibições – e, por isso, Hugo dos Santos só se pôde casar aos 25 anos, quando passou a tenente:
– Eu e todos. Nessa altura, havia essa limitação. Alguns que casaram em alferes, tiveram seis meses fora do serviço, de punição. Havia idade mínima e necessidade de autorização, o pai da noiva tinha que dizer que se comprometia – e ainda havia a chamada declaração de dote, que era apresentada às autoridades!
O GOLPE FALHADO E AS FINTAS
Depois de três comissões em África, em outubro de 1972 tornou-se professor da Academia Militar. Antes, Hugo dos Santos terminara em Angola o curso de engenharia, várias das suas ações nesse campo levaram-no ao Luso e por várias ações levaram-no ao Luso, onde, graças a vários soldados para lá mobilizados: do Seninho ao Chico Gordo, do Coentro Faria ao Fernando Ferreira, o FC Moxico se sagraria campeão provincial de futebol.
Antes do Golpe das Caldas (que, sendo a 16 de março de 1974, no dia em que o Sporting ganhou ao FC Porto, arrancando, assim, fulgurante para campeão, a crónica do jogo, assinada por Eugénio Alves no jornal República, seria usada, em linguagem codificada, para exortar os conspiradores a não desistirem da revolução…) a Hugo dos Santos despacharam-no da Academia Militar para Santa Margarida, por suspeita de que estivesse acamaradado aos revoltosos ligados a António de Spínola. Aliás, só não foi de pronto para a Guiné porque a lei impunha que professores catedráticos o fizesse apenas após o final do ano letivo.
Não, não se acobardou, continuou, ainda, assim, a envolver-se em reuniões clandestinas com Otelo, Melo Antunes & companhia, sabendo, por exemplo, que a PIDE lhe tinha o telefone sob escuta. Aliás, Hugo dos Santos conseguiu, sempre, fintar polícias e esbirros com o mesmo jeito que se lhe via a fintar adversários no basquetebol – e, por isso, esteve, como esteve, no comando da revolução que se desatou na madrugada de 25 de abril de 1974.
«SUBTIL DEPORTAÇÃO» OU NÃO
Mal a ditadura caiu, Hugo dos Santos rompeu com Otelo (e com os demais elementos do MFA que caíram, de súbito, para os braços e as ideias dos partidos mais radicais da esquerda, do PCP e do MDP, da LUAR à UDP). Defendia que a revolução devia ser entregue ao povo e os militares entregues aos quartéis. Com o PREC ao rubro despacharam-no para a Roménia como «adido militar», insinuou-se que tal fora «subtil deportação» na esperança de que se convertesse aos «esplendores do socialismo real».
Não se converteu – e, com Portugal restituído à «normalidade democrática» pelo golpe de 25 de novembro de 1975, meses depois ascendeu a brigadeiro, dando-se o comando da Base Militar de Tomar. Igual função ocupou, depois, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra – e já responsável pela Direção de Serviços de Transportes do Exército em 1984 tornou-se presidente da Federação Portuguesa de Basquetebol.
Promovido a General em 1986, Hugo dos Santos saltou a comandante da Guarda-Fiscal, de lá saindo em 1992, ano em que também largou a presidência da FPB. Subindo ao Conselho Superior e Disciplinar do Exército e a responsável pela Direção da Arma de Infantaria, em 1995 escolheram-no para Inspetor–geral do Exército. Eleito para presidente da Assembleia Geral da Associação de Basquetebol de Lisboa, no cargo estava quando faleceu a 5 de outubro de 2010, tendo já o nome na Taça da Liga – e, querendo ser cremado, pediu para ir vestido à civil por achar que a «farda das Forças Armadas não é para queimar»…