Nos 50 anos
do 25 de abril,
desporto e mais (5)
Por ANTÓNIO SIMÕES
Não era normal: a 12 de junho de 1968 António Oliveira Salazar, o Presidente do Conselho, apareceu muito «pálido e esmorecido» à reunião com os seus ministros – e repetiu-lhes, como se fosse nova, exposição que já lhes fizera. Estranhando-o todos os presentes, ninguém lhe chamou a atenção – «para não o preocupar». Houve, porém, quem, insinuante, o aconselhasse Salazar a ir de pronto para o Forte de Santo António de férias, que era tempo de veranear – pondo-se, ele, assim, em remanso.
Salazar foi e chegando agosto, nesse dia dia 3 de agosto levantou-se cedo e, pondo-se à espera do calista, ao sentar-se numa cadeira de lona, ela desconjuntou-se, ele caiu para trás, bateu com a cabeça no chão.
Maria de Jesus, a sua governanta, num ataque de fúria, atirou o que restava da cadeira ao mar – e, resmoneando, Salazar proibiu-a de chamar o médico. Achando-o estranho, dois dias depois telefonou, alvoroçada, ao prof. Eduardo Coelho. Correu para o forte, não tardou a decidir interná-lo de urgência na Cruz Vermelha.
Após sofrer AVC, entrou em coma. O cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa que fora amigo que fizera na Universidade de Coimbra, ainda se precipitou a dar-lhe a extrema-unção mas, mesmo perante os sinais de melhoria, a 27 de setembro de 1968, Américo Tomás entregou a presidência do Conselho de Ministros a Marcelo Caetano.
A FARSA DE SALAZAR A PENSAR QUE AINDA MANDAVA…
A pouco e pouco, António Oliveira Salazar foi regressando à vida agarrado a uma bengala, com uma parte do corpo paralisada, a memória recente perdida. Os médicos, julgando que a verdade o mataria, aconselharam que o levassem para São Bento e lhe dessem a ideia de que «continuava a mandar». Os antigos ministros iam ao palácio a fingido despacho, o Presidente da República passava por lá também a dar sinal de realidade à fantasia.
Salazar não lia jornais, não via televisão, não ouvia rádio – mas dava entrevistas. Uma para França. Nela, Roland Faure percebeu a farsa em que o tinham posto, denunciou-a, numa peça que terminava assim: «Estranha e dramática situação, impregnada da grandeza irreal deste personagem shakespeariano: o rei que não quer morrer…» (Os 3000 exemplares do L´Aurore que deviam vir de Paris para Lisboa foram bloqueados à entrada pela PIDE e a Censura não permitiu que se publicasse nos media nacionais uma linha a falar dessa entrevista fantasmagórica de Salazar.)
43 especialistas se envolveram no tratamento de António Oliveira Salazar. Um deles era Manuel negro e moçambicano que fora médico do futebol do Sporting – e no Sporting haveria de ser ainda mais…
NETO DE NEGOCIANTE DE ESCRAVOS COM MÃE MUÇULMANA
Neto (por via paterna) de um negociante de escravos que fora de Goa para a Zambézia, a mãe (muçulmana sunita convertida ao catolicismo) era igualmente de uma das famílias mais abastadas de Quelimane, onde Manuel Henriques Nazaré nascera, por maio de 1911.
Licenciado na Faculdade de Medicina de Lisboa, estava a fazer especialização em Análises Clínicas e Bacteriologia para o St. Georg Hospital de Hamburgo – e atirando-o a II Guerra Mundial de retorno a Portugal, a 18 de março de 1943 fez-se sócio do Sporting.
Justificando-se a criação (em 1947) do Conselho Geral «como corpo consultivo que se destina a manter as tradições gloriosas do SCP e a zelar pelo seu prestígio e continuidade dentro do pensamento dos seus fundadores» – escolhido para lá em 1952, Manuel Nazaré (já professor da Faculdade de Medicina de Lisboa) ficou seu «membro vitalício». Distinguido como Sócio Grande Benemérito «pelo empenho na construção do Estádio de Alvalade», a 19 de março de 1962, o contra-almirante Joel Pascoal levou-o para seu Vice-Presidente para as Atividades Desportivas.
O PRÍNCIPE NEGRO A TIRAR SANGUE COMO NINGUÉM TIRARA
Foi por essa altura que, o professor Eduardo Coelho chamou Manuel Nazaré (que, então, ainda tinha o apelido assim escrito: Nazareth) a São Bento com missão de tirar sangue a «Sua Excelência, o senhor Presidente do Conselho» (porque analista que antes o tentara falhara a colheita por cinco vezes) – e, em Máscaras de Salazar, Fernando Dacosta pôs assim história contada pelo Dr. Nazaré, ele próprio: «Estava sentado quando entrei. Levantou-se, despiu o casaco e arregaçou a camisa. Não tiro sangue a ninguém de pé, disse-lhe. Subimos para o seu quarto. Ele deitou-se e comentou: As minhas veias são muito difíceis de apanhar, não são? São sim, retorqui-lhe. O que não era verdade, eram normalíssimas. Não custou nada. Não percebi, aliás, o que se passara com o colega que me antecedera. Deve ter-se enervado. Salazar ficou tão agradado que exclamou sobre mim: O senhor doutor é um príncipe! – e, tempos depois disse ao presidente da Assembleia Nacional: Temos de fazer deste príncipe um deputado!»
Deputado o fizeram para a IX Legislatura (de 1965 a 1969) – e, pelo caminho, António Oliveira Salazar ainda cogitou indicá-lo para Governador Geral de Moçambique e, ao ouvir-lhe a ideia insistida, Manuel Nazaré aventou-lhe: «Apenas numa condição, o poderia ser: despachando diretamente com Sua Excelência, única maneira de se resolverem os problemas de Moçambique».
Como Salazar lhe afirmou que «isso não poderia ser, pois, seria, passar por cima do Ministro do Ultramar, do dr. Silva Cunha», Nazaré sugeriu-lhe Jorge Jardim (o pai de Cinha) de quem «era amigo e tratava por tu» – e o Presidente do Conselho retorquiu-lhe: «Seria um bom nome, simplesmente está metido na indústria, já não tem o beneplácito das populações». À berlinda saltou, então, Baltazar Rebelo de Sousa que fora aluno de Manuel Nazaré na Faculdade de Medicina – que a 27 de julho de 1968 tomou o posto.
A CAMINHO DA DOBRADINHA, O «HOMEM DO CÉU ESCURO»
Como diretor da FPF estava Marcelo Rebelo de Sousa, o filho de Baltazar – quando Manuel Nazaré se tornou presidente interino do Sporting. Escolhido presidente do Sporting (para suceder a Guilherme Brás Medeiros, o dono do Diário Popular que para lá levara como contínuo um atleta do clube chamado… Carlos Lopes e, no cumprimento dessa função, haveria de levar, amiúde, as provas ao Exame Prévio, como passara a denominar-se a Comissão de Censura com Caetano no lugar de Salazar) fora Orlando Valadão Chagas a 29 de março de 1973.
Depois de Valadão Chagas ter passado pelas direções de Ribeiro Ferreira e Góis Mota (e de ter sido Diretor Geral dos Desportos em 1958), no dia seguinte à sua eleição, Marcello Caetano convidou-o para Secretário de Estado da Juventude e Desporto. Tomando posse a 4 de abril, no minuto seguinte renunciou ao cargo – e a presidente da direção do Sporting subiu Manuel Nazaré, o seu primeiro vice que não perdeu tempo no aviso: «É mesmo e só para ser interino, até que se encontre melhor solução, que a minha vida não permite o que é preciso para se ser presidente do Sporting»,
Foram cinco os meses de Nazaré na presidência interina e, antes de a entregar a João Rocha, despedira Ronnie Allen de treinador e pusera Mário Lino no seu lugar. Com isso salvou parte dessa época (de 1972/1973) com a conquista da Taça de Portugal ao V. Setúbal de José Maria Pedroto.
Enfarinhando-se, adiante, notícia de que Manuel Nazaré se preparava para ir buscar Pedroto, desmentiu-o em A BOLA (do dia 17 de maio de 1973): «O Sporting não poderia encontrar treinador melhor que Lino, mesmo no estrangeiro» – e, na noite de 7 de setembro de 1973 em que João Rocha tomou posse, José Silveira Machado (que continuava presidente da AG) exaltou-o: «O dr. Nazaré foi o homem do céu escuro que não desanimou e, por isso, venceu todas as dificuldades – e sem a sua fé, a sua persistência e a sua vontade inquebrantável, não estaríamos agora a viver esta hora feliz», hora que Mário Lino ainda tornaria mais feliz levando o Sporting à dobradinha quando a Ditadura já se tinha desfeito em Portugal a 25 de abril de 1974…