Sem crónica do jogo entre o Sporting (da Miss) e FC Porto (do Guttmann), talvez não houvesse o golpe da vitória…

Nos 50 anos

do 25 de Abril,

desporto e mais (6)

Com vista ao Europeu de futebol de 1972, a FPF convidara Vítor Santos, chefe de redacção de A BOLA, para selecconador nacional. Não aceitou, foi Gomes da Silva. Durante a campanha, abriu-se o jogo contra a Escócia a uma mundanice: Riquita, a Miss Angola que haveria de tornar-se Miss Portugal foi de calção curto e bota até ao joelho ao estádio dar o pontapé de saída, ao lado de Eusébio.

Com Marcello Caetano no lugar de António Oliveira Salazar, na Presidência do Conselho, a Censura alargara a sua malha mas ainda havia quem, pressuroso, mandasse pintar slips ou desenhar soutiens nas fotografias de mulheres em poses eróticas que revistas mais rebeldes publicavam. E, com a RTP a transmitir os concursos de misses como se fossem jogos de futebol, feministas indignaram-se e montaram manifestações à porta do Casino do Estoril com cartazes dizendo: «Não é este tipo de promoção que nós queremos»...

NO VITÓRIA, PARA CASAR ERA PRECISO AUTORIZAÇÃO

Treinador do Vitória de Setúbal, era José Maria Pedroto. Na temporada de 1972/1973, só a custo é que o Benfica (de Jimmy Hagan) lhe impedira a vitória no campeonato e, semanas depois, Xavier de Lima, o presidente co clube que criava cavalos e era empresário de construção civil decidiu colocar os jogadores vitorianos sob alçada de regulamento que Artur Jorge, presidente do Sindicato, reputou, num ápice, de «esclavagista». Impedia-os de «frequentar praias ou piscinas», obrigava a que as entrevistas dependessem de «ordens superiores e exames prévios» – e até para casar precisavam de «autorização», podendo fazê-lo unicamente nas «férias do verão».

Mal Pedroto tomou conhecimento do documento, demitiu-se, com clamor raro à época:

Não posso admitir a lei da rolha e se eu sou um homem livre quero que os outros também o sejam…

Pedroto deixou Vitória de Setúbal por não admitir a «lei da rolha» e outras regras que o presidente queria impôr aos jogadores

 

Sem que Jorge Fagundes já se tivesse tornado (num outro sinal dos tempos) «presidente revolucionário» na FPF, Martins Canaverde chamou Pedroto a selecionador nacional. Com Fagundes, iria, por fevereiro de 1974, Marcelo Rebelo de Sousa para a federação. Cabendo-lhe, entre as funções de vogal da direção, a missão de porta-voz, promovia contactos com a imprensa de quinze em quinze dias na ideia de que para que na Praça da Alegria os telhados fossem de vidro. Marcello Caetano fazia coisa parecida ao país através das Conversas em Família na televisão – e, numa das suas «visitas à Província», jornalista apanhara na taramela de uma velhinha sentada à escada da sua pobre casa de pedra, a afirmação mais ou menos sussurada:

–  Este Salazar é muito diferente do outro, ri-se e vem ver a gente.

No regresso da Guiné, António de Spínola (que sobretudo nos anos 40 fora uma das principais figuras do hipismo nacional, vencendo concursos de saltos até no estrangeiro) escrevera livro que quem o viu antes da chegada a prelo percebeu que seria (ele mesmo) «revolução» (antes da revolução).

O NÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA QUE FORA PRESIDENTE DO BELENENSES

Chamando-lhe Portugal e o Futuro, defendia solução política para a guerra colonial (admitindo-a perdida…) e que o futuro das colónias (à exceção da Guiné) se fizesse não pela independência imediata, mas pela via federalista. Os 2000 exemplares postos à venda (a 100 escudos) ao meio-dia de 22 de Fevereiro na livraria do Apolo 70 esgotaram em 15 horas. Quase em todo o lado aconteceu o mesmo. Acabando de lê-lo, parece que Marcello Caetano desabafou:

–  Um golpe de Estado é agora inevitável. 

e, alvoroçado, partiu de fim-de-semana a ares para o Buçaco. No regresso solicitou a Américo Tomás (que, por setembro de 1944, fora da presidência do Belenenses para Ministro de Salazar) que o exonerasse, o Presidente da República não exonerou, atirando-lhe o murmúrio ao ar:

–  Não, senhor professor… Se, agora, for preciso ir ao fundo, vamos todos juntos…

Nos último anos da Ditadura o Estádio do Belenenses era… Estádio Almirante Américo Thomaz (escrito o Thomaz à antiga portuguesa como ele queria)

 Na sua secreta contestação (já para além da mera questão corporativa que levara à demissão de Horácio de Sá Viana Rebelo, o Ministro da Defesa que fora presidente do Sporting, o presidente do Sporting que ganhara a Taça das Taças em 1964) o Movimento dos Oficiais das Forças Armadas já decidira enveredar pela via do golpe – e, faltando, em ostensiva provocação, Francisco Costa Gomes e António de Spínola à desesperada manifestação de apoio da «Brigada do Reumático» levada por oficiais mais antigos a Caetano e Tomás (realizada a 14 de março de 1974) – o governo demitiu-os a ambos da chefia do Estado-Maior das Forças Armadas. O Presidente do Conselho ainda voltou a solicitar ao Presidente da República que o demitisse e a resposta foi como a da outra vez:

–  Não, senhor professor… Já é tarde para qualquer de nós abandonar o cargo!

ANTES DO CONSELHO LEONINO, O «ESTAPAFÚRDICO SEQUESTRO» E O CONSELHO LEONINO

Para o que seria, pois, o golpe de ataque ao regime criara-se direção formada por dois capitães: Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço e um major: Vítor Alves. Desconfiando que  andavam em reuniões de conspiração, Joaquim Silva Cunha (que a 7 de novembro de 1973 sucedera a Sá Viana Rebelo como o Ministro da Defesa) atirou Vasco Lourenço, Carlos Clemente, Antero Ribeiro da Silva e David Martelo compulsivamente para os Açores e para a Madeira – e de Otelo Saraiva de Carvalho partiu, num fogacho, a ideia de se sequestrar Vasco Lourenço para lhe evitar a transferência.

Vasco Lourenço (que haveria, depois, de surgir como figura de destaque no Conselho Leonino, chegando até a ser cogitado para a presidência do Sporting-) ainda esteve escondido durante 24 horas num apartamento vazio de Miraflores, alimentado por sandes que Otelo e Diniz de Almeida lá iam, sorrateiros, levar-lhe. Porém, de um instante para o outro, fartou-se do… «estapafúrdio sequestro» e, indo entregar-se, sob promessa de que se lhe rasgaria a ordem de transferência, em vez de perdão, prenderam-no no Forte da Trafaria.

Ao ouvir-se notícia do afastamento de Spínola e Costa Gomes, a reação do MFA foi determinada no avançar-se de novo para o golpe, «Vamos, vamos prá porrada!» Otelo Saraiva de Carvalho ainda vacilou:

O que eu acho é que vamos fazer grossa asneira…

e Casanova Ferreira, um dos mais temerários conspiradores, retorquiu-lhe:

Qual quê! Basta o governo saber que há unidades a sair contra ele e cai…

Otelo transigiu para não dar «parte de fraco» e ao encontrar-se com Vítor Alves insinuou-se-lhe a desesperança mais do que o desalento:

Isto vai dar buraco e vou ser preso. Preso está o Vasco Lourenço, ficas tu sozinho na direção mas não, isto não pode parar…

 

COMO O FC PORTO (DE GUTTMANN) TAMBÉM ENTROU NA HISTÓRIA

Fora por um triz que a PIDE (que então se chamava DGS) não apanhara Otelo em buscas a casas de dois descobertos conspiradores: Almeida Bruno e Manuel Monge – e na madrugada desse dia 16 de março deu-se mesmo o click para se «marchar sobre Lisboa». Quem já pela manhã passou pela Rotunda do Aeroporto ainda deu de vista com aparato de forças do Exército, da GNR, da Legião e da PIDE-DGS, mas só escutando noticiário da BBC saberia o que se passara: às quatro da matina coluna com 200 homens, comandada por Armando Marques Ramos, largara do Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, «para derrubar o governo». Partindo na fé de que pelo caminho outros contingentes se lhe juntariam, ao perceber-se que não Casanova Ferreira e Manuel Monge intercetaram-na, solicitando-lhe marha-atrás – e junto às portagens se renderam os «conspiradores».

Ao aperceber-se do desfecho, Otelo Saraiva de Carvalho só ao início da noite cumpriu a ordem de «prevenção rigorosa no País» (forma de se exigir que todos os militares se apresentassem nos seus quartéis ou unidades») – e a falta à Academia Militar (onde estava como professor) justificou-a com um alibi (e o jeito de ator que foram na sua juventude em Lourenço Marques): que uma saída familiar de fim de semana para fora de Lisboa fez com que já tarde e por acaso soubesse dos acontecimentos».

Aos acontecimentos espiolhara-os Otelo, dissimulado, na zona da Encarnação – de lá saindo «invadido por uma sensação calma e gostosa». «Sensação calma e desgostosa», jutificá-lo-ia, depois por ter visto o que viu:

… o vaivém constante de militaes e agentes da PIDE, de polícias e legionários, descomandados, fazendo cada um o que bem lhe apetecia ou cumprindo uma ordem de repente berrada por um oficial, com as autometralhadoras e os blindados, os jipes e as belliets a monte, lado a lado com uma crescente multidão de curiosos.

Por tal razão, a Otelo não lhe chegaram dubiezas ou ceticismos:

Uma ação firme, sujeita a um plano bem traçado e a um comando centralizado vencerá com um piparote e em dois tempos as forças do regime.

Era essa mensagem, pois, que precisava que se passasse – sem perda de tempo ou de ânimo, antes ainda do FC Porto subir a jogo com o Sporting na esperança de que Béla Guttmann voltasse a fazer do clube campeão, 15 anos depois do título que lhe dera apesar dos dez minutos a mais que Calabote deixara que se jogassem na Luz, sem que assim o Benfica fizesse à CUF o golo que lhe faltava para a festa…

No República dava-se imagem codificada, nos outros jornais dava-se ideia de que «reinava a ordem em todo o país»….

PARA OS PORTISTAS HOUVE MAIS QUE O GOLO QUE OS MATOU…

Nessa tarde de sábado, houve em Alvalade –  e a primeira página de A Bola do dia 18 de março de 1974 tinha à sua cabeça quatro fotos do desafio – e, entre elas, a legenda em título: Alvalade – o golo da dúvida.

Eram imagens do 2-0 – do golo de Dinis que deixara os portistas descabelados em campo e no balneário. Béla Guttmann, seu treinador, preferiu calar-se mas Abel, o avançado-centro que fizera história no Benfica, não:

Por que não mandaram outros árbitro para aqui? O sr. César Correia até fazia sinais para os jogadores do Sporting. Incrível, mas verdadeiro! Se não quiserem que o campeão seja o FC Porto digam desde já. Não enganem ninguém. Aquele segundo golo é inacreditável. Ele jurou pelos filhos que não tinha havido falta nenhuma, como foi possível?! Se querem que o Sporting seja campeão, deem-lhe já o título, escusam de andar, aos poucos, a fazer-lhe estes favores.

Equipa do FC Porto que ficou com as esperanças do título (quase) perdidas no dia em que o seu jogo de Alvalade foi imagem de esperança para os «insubordinados»…

Rolando (que estivera na conquista da Taça de Portugal que Pedroto dera aos portistas em 1968 e era o único título do clube no futebol desde 1959) não seguiu Abel na truculência da caramunha mas o árbitro sob o seu fogo de bateria:

Só não conseguimos o empate porque o senhor César Correia não quis, o segundo golo veio numa altura má e… foi ilegalíssimo, eles estavam a cair e em nós teve efeito pernicioso.

Tibi (que, no título da sua crónica Homero Serpa considerou o «fogueiro» do «Expresso Verde») defendeu-se igualmente ao ataque:

No primeiro golo, a bola partiu de Baltasar, bateu em Bené, apanhou Dinis em posição feliz – foi de sorte. No segundo, saltei e quando tinha a bola na mão o Dinis deu-lhe uma sapatada. Larguei-a. Se fosse eu a largar a bola, por minha culpa, ela teria ido para trás e nunca para a frente – e foi esse golo que nos matou…

Fora a 7 de setembro de 1973 que Manuel Nazaré (o médico de sangue negro que nascera em Moçambique e se tornara analista de António Oliveira Salazar nos últimos anos da vida do Ditador) passara a presidência do Sporting a João Rocha – e, desse jogo com o FC Porto, queixas não deixaram, contudo, de soltar também entre os sportinguistas. Por exemplo, Nélson a lamentar o «golo limpo» que lhe anularam:

–  Não, não carreguei o Tibi!

e de Dinis a revelá-lo a Joaquim Rita:

–  O 1-0 resultou de uma daquelas jogadas que só saem às vezes. O remate saiu-me bem e não tinha defesa. No 2-0 nem toquei no Tibi.Fiz a minha obrigação de empurrar a bola para a baliza, depois do Tibi a ter largado. E atenção: o FC Porto ainda não ficou afastado da corrida para o título…

Sporting de Mário Lino que batendo o FC Porto (na tarde em que falhou o «levantamento dos Caldas» ficou mais perto do título de campeão de 1973/1974 (o primeiro da democracia)

NO JORNAL REPÚBLICA, A MENSAGEM E A FINTA

Tendo, pois, Otelo Saraiva de Carvalho decidido atirar-se de pronto ao esboço de novo plano  para que o «movimento não morresse na praia» – para que, outros contestatários não esmorecessem na sua luta, a mensagem de que a hora não deixara de ser de esperança, saiu da crónica do Sporting-FC Porto que, no jornal República (dirigido por Raul Rego que haveria de ser apontado para primeiro Primeiro-Ministro da democracia, não o sendo por António de Spínola preferir Adelino da Palma Carlos, presidente da Assembleia Geral do Sporting entre 1946 e 1957, tornando-se, entretanto, opositor do regime em mais do que ser mandatário da candidatura de Norton de Matos contra Óscar Carmona) que  Eugénio Alves transformou numa finta à Censura (e não só…)

Sob o título (aparentemente inocente): «Quem travará os leões?» – as primeiras linhas foram escritas com se os sportinguistas simbolizassem as forças leais ao presidente do Conselho e os «homens do Norte» simbolizassem os militares (já detidos pelo fracasso do golpe da Caldas) que tinham «retirado, desiludidos, pela derrota»).

Apesar de admitir (como se fosse no jogo) «o adversário da capital mais bem organizado e apetrechado», Eugénio Alves foi ainda mais enleante (e sibilino) no modo como passou a mensagem que o MFA queria que se passasse: «Perdeu-se uma batalha mas não se perdeu a guerra».

30 anos depois do golpe das Caldas em linguagem de código no República, Eugénio Alves contá-lo-ia (a Clara Teixeira, em reportagem no Público):

O golpe foi importante porque mostrou a fragilidade do regime. Não deu certo porque foi uma coisa precipitada, pouco planeada. Receei a reacção do Vítor Direito, então chefe de redação, porque a censura andava muito em cima do República.

Só o montador da tipografia é que estava avisado. Tinha-lhe dado outro lead, com rigorosamente o mesmo número de caracteres, para que ele pudesse fazer a substituição caso a coisa corresse mal com a Censura…

Em 1974, Eugénio Alves fora do Diário de Lisboa para o República (jornal já notado pela contestação à Ditadura, tendo como colaboradores Mário Soares, José Jorge Letria, Gustavo Soromenho, Alberto Arons de Carvalho…)

Não, não correu nada mal

… até o Vítor Direito reagiu bem

no dia seguinte, enviado-especial do Le Monde abriu artigo a desvelar o modo como assim se «iludira a censura», noticiando o que a ditadura procurara esconder: «que tinha havido uma vaga tentativa de rebelião mas que a ordem tinha sido prontamente reposta». Que não, se veria 39 dias volvidos – e ao logo desses 39 dias o que também se viu foi a Censura (que era o Exame Prévio) a olhar com mais do que dois olhos para o República:

… pedia as provas das páginas todas e não só os textos e depois atrasava o visto, estava sempre a atrasar o visto.