Antes de se tornar imortal, Carlos Lopes levava provas à Censura (e já era Prémio CNID)

Nos 50 anos do 25 de Abril, homenagem do CNID a Carlos Lopes nos 40 anos da medalha de ouro de Los Angeles

25 de abril,

Desporto

(e mais)

Por ANTÓNIO SIMÕES

É em Viseu, perto da casa de pedra onde nasceu em Vildemoinhos, a Homenagem do CNID a Carlos Lopes – e a consagração feita pelo CNID a Carlos Lopes é história de há muitos anos, antes, sequer, de se imaginar que ele pudesse chegar onde chegou…

Fora em 1970 que tudo começara: Futebolista do Ano era quem o CNID escolhesse – e o seu primeiro vencedor não teve toque de surpresa: Eusébio. Juntando-lhes a eleição (pelos associados do CNID) da Revelação do Ano e do Atleta do Ano – o Atleta do Ano em 1972 foi Carlos Lopes (no futebol o galhardoado foi Toni e a revelação do ano foi Maria José Sobral, velocista então treinada por Rui Mingas, angolano que a PIDE trouxera, tempos antes, preso da Guiné por o descobrir, durante o serviço militar, a tentar fugir de lá e que teno-se, dedicado, à música, tinha quase todas as suas canções proibidas, tal como Zeca Afonso…)

DIÁRIO POPULAR E MULHERES-POLÍCIAS

Meses antes a PSP abrira os seus quadros a 229 mulheres (entre 700 candidatas). Exigindo-lhes «exame do segundo grau da instrução primária» e «irrepreensível comportamento moral e civil», atribuíra-lhes salário mensal de 2200 escudos – e só por janeiro de 1973 é que as tiraram do que seriam as suas primeiras responsabilidades: «no atendimento dos serviços telefónicos, na enfermagem em postos de socorro, na escrituração em serviços burocráticos e na informação a turistas».

Tal sucedendo por sugestão de cronista do Diário Popular, o Diário Popular não deixou de sublinhá-lo: «Tivemos ontem o prazer de verificar que as sugestões publicadas foram adotadas pelo comando da Polícia e que, em vários cruzamentos da cidade, as eficientes guardas da PSP apareceram a dirigir o tráfego – com autoridade, bom senso e agilidade, o que mereceu, desde logo, o apoio da população». Ficando elas igualmente com função de «proteção de crianças junto a escolas e apoio a idosos e deficientes», vedadas lhes estava, todavia, o «uso da força e as missões noturnas, bem como o policiamento das zonas de boémia».

Carlos Lopes (aqui com Carlos Cabral, Aniceto Simões e Fernando Mamede) esteve quase a fugir de Lisboa por falta de condições…

POR POUCO LOPES NÃO FUGIU…

No Diário Popular trabalhava, então, como contínuo o Carlos Lopes, ouvindo-se-lhe a recordação quando já se tornara imortal em mais do que primeiro português a tornar-se campeão olímpico (e não fugindo ao seu destino por pouco, muito pouco):

Quando ainda estava, como contínuo, no Diário Popular, levaram-me a um psicólogo e, assim do pé para a mão, ele perguntou-me: “Você não gosta disto, pois não?!” Afirmei-lhe que não, ele voltou a perguntar-me: “Então por que é que está aqui?” – e, a minha resposta foi a óbvia: “Porque é uma necessidade, porque tenho de trabalhar para viver, tenho de trabalhar para sobreviver”. Vá lá, achando-se, no Sporting, que, mesmo tendo de trabalhar para viver, trabalhar para sobreviver, poderiam dar-me coisa um bocadinho menos complicada, deram-me o Crédito Predial. Antes, tinham sido meses e meses de muito penar, de muito padecer. Saturado de tanto esperar que me dessem as condições mínimas para fazer atletismo sem ter de o fazer com armas tão desiguais em relação aos estrangeiros com quem eu me batia, houve uma altura em que não aguentei mais – e decidi voltar a Viseu, acabar com a história assim. A história só não acabou assim, só não acabou, ali porque o Eduardo Simões avisou o senhor João Castelo Branco (responsável pela seção de atletismo e que eu escolheria para meu padrinho de casamento com a Teresa): “Olhe que o gajo vai pirar-se, vai-se embora!” – foi por muito pouco que me apanharam na Estação de Santa Apolónia. Vendo-me de malas nas mãos, chamou-me louco, levou-me a jantar e lá me aguentei.

Foi a revolução de 25 de abril que fez com que Carlos Lopes tivesse o que outros tinham

A VIDA DIFÍCIL E O CARRO VELHO

Durante esse tempo de trabalho como contínuo do Diário Popular por várias vezes lhe coube levar textos do jornal (que pertencia a Guilherme Brás Medeiros, então presidente do Sporting) à Censura – e o salto do Diário Popular para o Crédito Predial Português não lhe permitia, ainda assim, condições que lhe permitissem lutar de igual para igual com os melhores atletas mundiais (e espantoso era que o conseguisse com tantos e tantos deles…)

O que eu tinha e não sei se algum deles tinha como eu tinha era o espírito, um espírito danado, do arco da velha: penasse o que penasse, não era capaz de faltar um treino, muitas vezes até adoentado para lá ia… Depois, em competição, era correr sempre para ganhar, nunca me inferiorizar quando corria com os melhores do mundo, não ter medo de ninguém – mesmo sabendo que eles só eram melhores do que eu porque treinavam mais. Sim, eu sabia: por essa altura, os melhores fundistas do mundo já treinavam cinco ou seis horas por dia, eu não podia. Se, na maior parte deles os empregos eram quase só de fachada, comigo não. Como é que eu poderia fazer os tempos que faziam o Viren, o Puttemans, o Roelants ou o Bedford, o Haro ou o Mora – com a vida que eu tinha? No Diário Popular trabalhava das nove às cinco. Indo para o Crédito Predial comecei por trabalhar das nove ao meio-dia e das duas às seis, mas, vá lá, permitiram-me que escolhesse um só turno, calhou-me o da tarde. Assim, levantava-me pelas nove da manhã, seguia para o Estádio de Alvalade ou para o Estádio Nacional – e treinava até ao meio-dia. De início foi complicado, terrível essa solidão, o treino sem um amigo, sem um companheiro, com quem desabafar, conversar, dar uma gargalhada. Correr, correr, correr, sem uma única testemunha, alguém que aparecesse a dar um bom dia, a fazer um aceno – e era, sobretudo aí, que me vinha à mona a ideia de desistir, acabar com esse sufoco, esse sacrifício, essa saturação. E, depois do treino, era continuar na vida a correr: a correr para o banho, a correr para o almoço, a correr para o banco, a correr para o jantar, sem poder ir, para desenjoar, para desentediar, a um cinema, a um teatro… Dava para ir um pouco até casa da Teresa, ainda apenas minha noiva – e deitar-me lá para as onze e meia, meia-noite. O que me safava era, pois, já ter um carro, o Fiat 600 que me custara 17 contos. Sem ele, estava arrumado. Saía do treino, ia ao metropolitano, deixava o carro estacionado, de metro ia para a Baixa, se não fosse assim não conseguia estar a horas em parte nenhuma, com as dificuldades que havia, então, nos transportes.

Carlos Lopes a caminho da medalha de prata nos 10 mil metros dos Jogos Olímpicos de Montreal, o ouro tirou-lho Lasse Viren na ponta final

O clamor (que também era um sinal, um alerta…) soltou-se ainda mais insistente (em parangonas de entrevista que Carlos Miranda fez a Carlos Lopes em A BOLA a 31 de janeiro de 1974): «Para correr em Portugal, tudo o que tenho vindo a fazer chega-me, está bem. Mas se quiser, realmente, competir com as feras, com os grandes nomes do atletismo internacional, então só o poderei fazer duma maneira: trabalhar nas mesmas condições do que eles. Levo oito anos de atletismo. Tenho vindo a subir, tenho estado várias vezes em foco, julgo até já poder admitir que as tais feras não serão, assim, muitíssimo melhores do que eu – e a continuar assim, sinceramente, não sei se não prefiro desistir»:

Não, não era saturação pelos anos de atletismo. Que, na verdade, nem sequer eram tantos como pareciam porque, até quase aos meus 18, o que eu queria era futebol. Não, o futebol nunca deixou de ser uma paixão – e, por isso, quando, entre treinos, a gente brincava ao futebol, o que eu continuava a querer ser era ponta de lança. Passava a vida a fugir, aos saltinhos, porque, devido a esse gosto de driblar e de marcar golos, não poderia deixar que me dessem nas canelas. Ainda agora me lembro bem: contei isso nessa entrevista ao senhor Carlos Miranda e também lhe revelei uma outra coisa: que, por causa da luta que me viram dar ao Mariano Haro, no Crosse de San Sebastian, a organização ofereceu-me um relógio de ouro igual ao que coube ao vencedor, no valor de 11 contos. Esse relógio é o Nuno que o tem. Cá, os prémios não tinham, obviamente, nada que se parecesse – até aquela coisa dos eletrodomésticos, das panelas e das varinhas mágicas, só começaram a aparecer depois do 25 de abril…

NO 25 DE ABRIL, A OUSADIA DE CORRER

Não tardou que chegasse pela madrugada o dia em que tudo mudaria, esse dia 25 de abril de 1974 – e, inusitado (ou talvez não para quem lhe conhecia o espírito, destemido e aventureiro – que era o nunca deixava de pòr, sobretudo, também, no modo como corria) foi o que Carlos Lopes fez num salto…

Casando-me com a Teresa semanas antes, a 31 de março de 1974, já vivia no Paço do Lumiar e, aparecendo a minha sogra pelas sete da manhã a contar-nos que havia movimentações de tropas pela cidade, eu não fui de modas: fui equipar-me e desatei a correr para Monsanto, fazendo do treino estratégia para ver o que se passava. É, sempre fui muito curioso – e, nisso da revolução do 25 de abril, não havia melhor forma de perceber o que se estava a passar a correr pela cidade fora… Não indo para o banco nesse dia, tudo isso ouvi entusiasmado pela rádio – pois, nessa altura, ainda não tinha TV, a primeira que tive foi meses depois, comprada por mim. Televisões ganhas em provas haveria de ter, depois, no arranque da década de 80, mais duas: uma na Corrida Estoril-Cascais-Sintra e outra na São Silvestre do Porto e essas já a cores…

Em Chpestown, o primeiro grande momento desportivo do Portugal de Abril: Carlos Lopes campeão mundial de corta-mato

Passando, num fogacho, da ditadura à liberdade, Moniz Pereira espicaçou-se na batalha que atiraria (graças, sobretudo, a Carlos Lopes) o atletismo para nova dimensão: pedindo que, aos melhores atletas portugueses, se desse dispensa dos empregos pelo menos da parte da manhã, para se preparaem para os Jogos Olímpicos de Montreal, foi-lhes permitida a «benesse».

AVISO NO BANCO E DOIS CONTOS DO SPORTING

Anunciando o jornal  A Capital anunciara os prémios para o concurso Miss Portugal: um automóvel de 107 contos e um «magnífico blusão de pele de leopardo» no valor de 25 contos – andava-se já por 1975 quando, em A BOLA, Lopes o revelou: «Sou um campeão a dois contos por mês»:

Lembro-me bem, muito bem. Foi uma entrevista do Joaquim Rita, pouco antes de eu cair doente e, por causa disso, ter de ficar de fora do Campeonato Nacional de Corta-Mato. Desde 1970 que o campeão era eu, sem mim foi o Aniceto Simões. Ah! A questão do campeão a dois contos… Dois contos era o que o Sporting me dava e não dava para os transportes e para a alimentação que atleta de alta competição deveria ter, nos seus cuidados. Privilégios no emprego, também não tinha. Aliás, tendo ido do Crédito Predial para o Banco do Algarve por empenho do senhor João Rocha, mal me viu chegar, o doutor Nunes dos Santos que, para além de administrador do banco, era vice-presidente do senhor João Rocha no Sporting, logo me preveniu: “Olha lá, tu aqui não penses que vais ter tratamento especial, não penses que és atleta, está bem?!” Ou seja, era um empregado como os outros, saía do banco às 18.30 e só depois ia a Alvalade treinar. Deixarem-me ir, deixavam, mas se tivesse de competir no estrangeiro, tinha por certo que, no fim do mês, o ordenado não me chegava por inteiro. Se faltasse uma hora ou um dia por causa do atletismo, já sabia: descontavam-me no fim do mês. Por isso, aquele título – e recebendo do Sporting dois contos por mês até já era dos que mais recebiam. Só não dava para os transportes, para uma boa alimentação – e ainda para compensar as horas perdidas no emprego.

Nos 50 anos de Abril, os 40 anos de Lopes campeão olímpico (e a homenagem do CNID em Viseu)

Não foi preciso esperar muito: podendo, enfim, treinar-se como os seus maiores adversários internacionais, em março de 1976, Carlos Lopes saiu de Chpstown campeão do mundo de corta-mato – primeiro passo para a eternidade a que se aconchegou e que não se fez apenas da medalha de ouro na maratona nos Jogos Olímpicos de  Los Angeles, a 12 de agosto de 1984…