Por entre atriz em topless e Misses a jogar à bola, o Sporting-Benfica iludiu Marcelo e assustou Otelo…

Nessa entrevista a Clara Teixeira e Sara Belo Luís, Vasco Lourenço também contou como, pelo encalço, se decidiram no engodo dos sequestros – ou melhor: nos «raptos simulados»:

Foi uma reunião alargada. Estavam o Salgueiro Maia, o Melo Antunes, o Vítor Alves, o Otelo Saraiva de Carvalho e alguns oficiais da Marinha. Quando se designou quem iria raptar quem, calhou-me o Otelo. Como eu vivia no Estoril e ele em Oeiras ficou decidido que seria ele a raptar-me. Mas os marinheiros convenceram-nos a deixá-los falar com o Ministro da Marinha – que diziam que era um tipo porreiro… -, para que intercedesse junto do ministro do Exército no sentido da anulação da ordem de transferência. Às três da manhã, acordaram o ministro, comunicaram-lhe que o movimento não aceitava a transferência dos três capitães para as ilhas e, claro, ele foi a correr alertar o ministro do Exército! Este decretou a entrada das forças armadas em prevenção rigorosa – o estado imediatamente anterior ao estado de sítio…

Ainda pela madrugada, tocou o telefone em casa de Vasco Lourenço…

Era o Sanches Osório a avisar-me de que estavam todos a ser chamados para as unidades. Como sabíamos que o meu telefone estava sob escuta, perguntei apenas se podia ir para o sítio combinado e ele, sem fazer ideia de qual era o sítio combinado, disse-me que sim. Esse sítio era a casa do Otelo. Fui ter com ele e disse-lhe: estou aqui para que tu me raptes! Tivemos de arranjar onde me esconder e o Manuel Monge sugeriu a casa desabitada de uma cunhada no prédio dele, em Miraflores. Fiquei lá e fui muito bem tratado pela mulher do Manuel Monge que me levou comida. Também tinha sido decidido que os oficiais fariam uma manifestação no Terreiro do Paço para dizer ao ministro do Exército que estavam de acordo com os raptos e contra a atitude dele. Mas, com a entreda em prevenção rigorosa, já não podia ser feita.

Com Vasco Lourenço «despachado» para os Açores, ficou Otelo Saraiva de Carvalho a comandar o golpe

O TELEGRAMA QUE FALAVA DA TIA AURORA A PARTIR DOS ESTADOS UNIDOS ÀS TRÊS DA MANHÃ DEPOIS DA «BRIGADA DO REUMÁTICO» EM «VASSALAGEM…

Não querendo, pois, entrar em «situação de clandestinidade», Vasco Lourenço e Antero Ribeiro da Silva resolveram entregar-se…

Carlos Clemente não chegara a ser raptado porque não tinha conseguido sair de casa a tempo… Combinamos dizer que o Nuno Pinto Soares me tinha encontrado e ao Ribeiro da Silva à porta de casa. No dia 9 de março, quando toda a gente andava á procura dos dois capitães que não tinham seguido para as iilhas, aparecemos os três no Quartel-Genreal, em São Sebastião da Pedreira e no dia seguinte fomos levados para a Casa de Reclusão da Trafaria. Ficámos lá, na prisão dos oficiais, teoricamente incomunicáveis…

Ainda na Trafaria assistiram (sem qualquer condicionalismo) à «vassalagem» que a «Brigada do Reumático» (assim se denominou o grupo de oficiais que correram a expressar apoio a Marcelo Caetano») – e horas depois de Vasco Lourenço aterrar (de castigo…) nos Açores, falhou o Golpe das Caldas (e também foi na Visão História, nos 50 anos do 25 de Abril, que ele o recordou):

Fiquei completamente desesperado. Pensei: “Que cambada dee incompetentes! Eu faltei e só fizeram asneiras”. Era o responsável operacional do movimento e não sabia de nada. Estive uns dias sem informação, bastante desanimado, quase desesperado. O Otelo envolveu-se no 16 de Março, não foi preso e não se sabia bem porquê…Se eu tivesse sido “chutado” para os Açores em janeiro ou fevereiro, o 25 de Abril não teria acontecido naquela data. Como fui em março, o Otelo substituiu-me e foi relativamente fácil organizar o golpe. Estava tudo preparado. Combinámos que, quando o golpe tivesse início, o Otelo mandaria um telegrama em código para a sogra do Melo Antunes que residia em Ponta Delgada, com o seguinte texto: “Tia Aurora segue Estados Unidos 25, 3 da manhã. Um abraço, primo António». Ao recebermos o telegrama no dia 24 percebemos que o golpe ia começar às três da manhã do dia seguinte…»

Antes, na outra madrugada, a madrugada de 16 de março, os 200 homens que tinham largado do Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, para derrubar o governo, renderam-se às portas do aeroporto e do jogo entre o Sporting e o FC Porto que se disputara nessa tarde, Eugénio Alves escrevera, no jornal República, crónica que tinha, igualmente mensagem cifrada aos militares do MFA e terminava assim: «perder uma batalha não significa perder a guerra». Era o sinal combinado de que a conspiração não esmorecera – e a 31 de março (já com Vasco Lourenço nos Açores) Alvalade cruzou-se de novo com a história, no Sporting-Benfica.

 

A ILUSÃO DO BANHO DE MULTIDÃO QUE MARCELO CAETANO SENTIU EM ALVALADE

Na semana anterior, o Benfica empatara em Aveiro, o Sporting vencera em Guimarães (com um golo de Nélson em off-side…) – pelo que chegaram os sportinguistas à 26ª jornada com cinco pontos de vantagem sobre o Benfica. Para mostrar que o «país continuava tranquilo e sob controlo», decidiu-se que nesse dia 31 de março de 1974, Marcelo Caetano (que era sócio honorário do Sporting) fosse a Alvalade:

… para um banho de multidão que enervasse ou dissuadisse eventuais revolucionários.

Marcello Caetano na «ilusão» de que «reinava a ordem» no país que tinha com ele…

O Presidente do Conselho surgiu de surpresa no Estádio, ao lado de João Rocha e Borges Coutinho (a Censura proibira os jornais ou as rádios de falarem nisso antes…)  e o que aconteceu, Marcelo contou-o nas suas Memórias:

Quando o alto-falante anunciou que eu me achava no camarote, a assistência, calculada em 80.000 espectadores, como movida por uma mola, consagrou-me demorada ovação.

Por isso, Caetano convenceu-se (bem iludido…) de que era mesmo verdade o que lhe afiançavam:

Que tinha o país em sossego geral e apoio total ao regime!

Otelo Saraiva de Carvalho não o esconderia: assustou-se com o modo como Marcelo fora recebido em Alvalade – e só não desistira do golpe porque ele estava em ponto de não retorno.

 

A GUERRA FRIA EM QUE SPORTING E BENFICA ANDAVAM (E AO PEDIR-SE CONTROLO ANTI-DOPING, TONI FALOU DE «COISAS MESQUINHAS»

De guerra fria (ou não…) se fizera a semana anterior ao jogo. O Sporting pedira à Comissão Central (que tinha como seu presidente Alpoim Calvão, o comandante de Marinha que, apesar de spinolista, se recusara a entrar no Movimento das Forças Armandas por não lhe terem garantido, de forma vincada, que o «Ultramar não se perderia…») a nomeação de um árbitro espanhol e em comunicado com especulações subtis exigiu que se fizesse controlo anti-doping. Toni, o capitão do Benfica, abriu as hostilidades:

Incrível como pessoas com responsabilidades tomam atitudes tão mesquinhas. Falta de categoria, para não lhe chamar outra coisa.

António Simões seguiu pelo mesmo tom:

Foi pena o Sporting não se ter lembrado do controlo anti-doping no início do Campeonato, mas nós não devemos e não tememos.

COM 5-2, CAETANO SAIU DO ESTÁDIO (E EUSÉBIO NÃO JOGOU, NÃO TINHA MOEDAS NA BOTA…)

A «influência do pacifismo hippie» já passasra pelo Teatro Vasco Santana – e pelo Parque Mayer iam-se abrindo cada vez mais frechas de liberdade (contra o «cinzentismo salazarento» e o «moralismo tacanho»): Io Apoloni incendiou o palco de alvoroço por destapar os seios na revista O Vison Voador, despindo, insinuante, o seu vison – mas o «despudor do topless» só permitiu que, da plateia, se lhe vissem nuas as costas. Em cena estava Io com Raul Solnado e com Artur Semedo, o Artur Semedo que, inspirado num dito de Coimbra para a Académica, haveria de largar frase que se tornou famosa e icónica:

O Benfica nunca perde, às vezes não ganha!

(O sucesso de O Vison Voador  levara a que, à entrada dos anos 70, Io Apolloni andasse em fervorosa tournée pelos teatros de guerra em Angola e Moçambique a atuar para as tropas portuguesas. Após a revolução de 25 de Abril de 1974 correria a filiar-se no Partido Comunista por proposta de Rogério Paulo – e era, pois, já o que era quando sua mais famosa atuação se desembrulhou em escarcéu e polémica, estando já Portugal a viver a liberdade que a revolução lhe dera mas ainda a achar-se «muito bonito» certo «respeitinho»: algures por 1978, a peça Guilherme e Marinela esgotaria várias sessões vindo-lhe, todavia, a p<o «escândalo»  não apenas do cartaz com Io nua de costa mas também do seu «caráter antimachista». Tudo isso arrastaria a RTP à proibição de transmissão da peça que gravara e a atriz a interrogatório na Polícia Judiciária como antes se faziam na PIDE e não só por «atentado ao pudor ou à moral e aos bons costumes»…)

O 25 de Abril até fez de Florbela Queirós imagem nova da República (com um seio de fora) mas quatro anos depois Io Apolloni nua de costas deu em escândalo…

Antes dos jogos com o Sporting, Eusébio criara ritual (mais ou menos) secreto: colocava dentro das botas o número de moedas que achava que seriam os golos que marcariam – e, nessa tarde, não jogou, estava lesionado. (Lesionados estavam, também, Artur Jorge e Jaime Graça).

Logo aos 8 minutos, Yazalde fez 1-0. Humberto Coelho empatou aos 12. Aos 35, o Benfica já ganhava por 3-1 – graças a mais dois golos de Nené. Yazalde reduziu de penálti à beira do intervalo. Jordão fez o 4-2, Vítor Martins o 5-2 – e, logo depois, Marcelo Caetano deixou a tribuna, entre sorrisos, iludido:

Não houve ninguém nas duas longas filas de pessoas que, como eu, procuravam evitar a confusão do final e por entre as quais passei que não me desse palmas – o que às pessoas que me acompanhavam pareceu ainda mais expressivo que a manifestação coletiva do início.

Helena Isabel que depois de ter sido Miss Fotogenia estava em destaque na peça Tudo a Nu com Portugal a caminho da Liberdade…

10 CONTOS DE PRÉMIO PARA OS BENFIQUISTAS, 107 CUSTAVA O CARRO DA MISS PORTUGAL

Marcelo Caetano já não viu o golo de Dé, o golo que fechou o placard em 5-3, o golo que fez com que cada jogador do Benfica tivesse perdido cinco contos – isso foi Toni quem o recordou:

Por se tratar de um dérbi, do dérbi que era, o prémio de jogo aumentou de forma brutal. Costumávamos receber 100 escudos por cada golo de diferença que fizéssemos, nesse jogo com o Sporting passou para 5 contos. Raul Nazaré assinalou pénalti que não era, o Dé marcou-o – e, assim, ganhando por dois golos, ficámos cada um com 10 contos, se fossem três, o prémio teria sido de 15.

Automóvel de 107 contos fora, para além de um magnífico blusão em pele de leopardo» o prémio para a vencedora do concurso Miss Portugal do ano anterior, marcado também pela contestação de feministas com cartazes que diziam: «Não é este tipo de promoção que nós queremos».

Pelos jornais cirandava anúncio a Tudo a Nu, revista em cena no Parque Mayer «com 25 lindas mulheres» – e mais: à cabeça do caratz estava, para além de Francisco Nicholson, Henrique Viana e Rui Mendes, Helena Isabel, a Miss Fotogenia de 1971, que fora ginasta do Lisboa Ginásio, tal como Isabel Baía, essa a caminho de se tornar estrela na RTP…

Com o Sporting-Benfica já a agitar Lisboa (e não só…) nos seus frenesins, com as candidatas a Miss Portugal 1974, fez A BOLA reportagem destacada (com algumas delas ao sol do Estoril em biquínis) – ou a ensaiarem, afoitas, pontapés numa bola, mas aí vestidas, uma delas de vestido (nem por isso curto), outra que calças (que, anos antes, era pecado, como pecado eram as mini-saias…)

Yazalde a caminho da Bota de Ouro que faria com que Beckenbauer lhe dissesse: «Tens a mulher de futebolista mais bonita do Mundo»: Carmizé, a atriz que jogara futebol com Florbela Queirós e Io Apolloni

OS VELHINHOS E O ENTERRO (E AS AGULHAS REVOLUCIONÁRIAS NO YAZALDE

Aos 66 minutos do jogo com o Benfica, o Sporting perdera Yazalde: choque com Toni lesionou-o nos ligamentos, teve de abandonar o campo. Como estava a lutar pela Bola de Ouro, João Rocha convenceu Manuel Marques, o seu massagista, a passá-lo para as mãos de um japonês que também era treinador de judo e por Lisboa se tratava como Mestre Kobayashi – que o tratou com agulhas espetadas na pele, lhe permitiu que fosse até jogar a Aveiro na ronda seguinte.) Por isso, claro, foi Dé quem marcou o penalty – e à saída do campo, não calou o espanto:

Me tinham dito que o Benfica era time de velhinhos. Mas não. É timão, não é velho não. E ganhou sensacionalmente. Só temos de tirar o chapéu para os caras. Mas, acreditem, campeões vamos ser nós…

Fernando Cabrita, o treinador do Benfica (que sucedera a Jimmy Hagan, que deixara, irritado, o cargo por Borges Coutinho ter anulado, sentimental, os castigos que Hagan aplicara a Toni, Humberto e Nelinho, para que eles jogassem a Festa de Eusébio) deixou Alvalade de sonho refeito:

Os meus jogadores não precisam de se drogar para serem os melhores de Portugal, como provámos com o Sporting. Ainda há oito pontos em disputa, não nos façam já o enterro..

Apesar do empate do Sporting com o Beira-Mar ter deixado o Benfica a um ponto do primeiro lugar, a equipa de Mário Lino não tropeçou mais e acabou mesmo campeã, a festa fez-se já com Portugal em democracia (e Marcelo Caetano e Américo Tomás a caminho do exílio no Brasil) – e sim: a Bota de Ouro também foi para Yazalde…