Tal como Januário Barreto, Carolina Beatriz Ângelo nascera em 1877 – mas na Guarda. Casaram-se em 1902, no ano em que concluíram o curso de medicina. Primeira mulher a operar no Hospital de S. José, embrenhada na Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, confecionou a bandeira verde e vermelha desfraldada durante a revolução de 5 de Outubro.
EM VEZ DO SPORT LISBOA E BENFICA, JANUÁRIO BARRETO ESCOLHEU O… SPORTING CLUBE DE PORTUGAL (PARA ONDE TINHAM IDO OS «DISSIDENTES DE BELÉM»)
A República foi sonho que Januário Barreto não viu transformado em realidade – morrera a 23 de junho de 1910, vítima de tuberculose. Estava, então, na presidência do Conselho Fiscal do… Sporting – para seu sócio entrara na sequência das atribulações por que passara o Sport Lisboa e que Cosme Damião recordaria numa das primeiras edições de A BOLA: «O Sport Lisboa tinha uma primeira categoria com gente de elevada posição social. Januário Barreto estava médico. António Couto, arquiteto. Francisco dos Santos e José Neto eram escultores. Pedro Guedes começava a firmar o seu nome como pintor. Silvestre José da Silva era professor na Casa Pia. Daniel Queirós dos Santos estava bem empregado. Emílio de Carvalho criara fama como gravador. Os dois Rosa Rodrigues, o António e o Cândido, estavam bem relacionados. Não lhes agradava, por isso, andarem com equipamentos e balneários ao ar livre, sem comodidade nenhuma, à procura de campo onde jogar.»
Percebendo-lhes os desconcertos e as agruras, os desconchavos e os transtornos, José Alvalade desafiou-os para o Sporting – e o Sport Lisboa só não morreu ali mesmo porque Cosme Damião, Félix Bermudes e Marcolino de Bragança não deixaram. Meses após o SL se fundir no Sport Lisboa e Benfica (a 4 de setembro de 1908), Januário Barreto fez-se sócio do Sporting – e, na sequência do seu falecimento precoce, para o seu lugar na presidência do Conselho Fiscal do Sporting foi outro dissidente do Sport Lisboa: José da Cruz Viegas (que fora quem tivera a ideia do vermelho para as camisolas e para a sua divisa o et pluribus unum).
FICANDO VIÚVA, A AVÓ ARRANJOU FORMA DE VOTAR ALEGANDO SER O QUE A LEI ACHAVA QUE SÓ ERAM ATRIBUTOS DE HOMENS (A QUEM SÓ SE RECUSARIA DIREITO EM «ESTADO DE EMBRIAGUEZ»)
Andando-se por fevereiro de 1911, Carolina Beatriz Ângelo liderou delegação de republicanas que entregou a Teófilo Braga, presidente do Governo Provisório, manifesto reivindicando voto para mulheres. Não se lhe ligou, na lei se determinou: «têm direito a voto todos cidadãos portugueses com mais de 21 anos que saibam ler e escrever e sejam chefes de família». Alegando «saber ler e escrever» e ser «chefe de família» por viver «nessa qualidade com filha menor a cujo sustento e educação provinha com o seu trabalho», Beatriz Ângelo requereu que a incluíssem no recenseamento eleitoral em curso. Indeferiram-no por «ser mulher», recorreu a tribunal, apanhou decisão a seu favor.
No dia da votação, polícia tentou barrá-la à porta da assembleia e, mostrando a sentença, do juiz, entrou na sala. Vacilando o presidente da mesa em dar-lhe o boletim, Beatriz Ângelo apontou para o nome no caderno e lembrou-lhe o art. 64º da Lei Eleitoral:
– Diz que só se pode recusar voto de quem estiver recenseado no caso de demência ou embriaguez
e votou mesmo.
O governo do Partido Republicano correu a alterar a letra da lei – e seis meses volvidos, antes de Carolina Beatriz Ângelo fazer 34 anos, ataque cardíaco matou-a.
De Maria Emília Ângelo Barreto Fagundes (a filha, então com nove anos) nasceu Jorge Humberto Fagundes (o pai, Humberto de Matos Fagundes, viera de Angra do Heroísmo para Lisboa) – Jorge Humberto Fagundes que, antes de se tornar, presidente da FPF (com Marcelo Rebelo de Sousa a seu diretor e porta-voz) saíra, com Jorge Sampaio (e com Vítor Wengorovius e Vera Jardim) da Crise Académica de 1962 como rosto da resistência ao fascismo, não mais deixando de o ser…
O NOVO PRESIDENTE DA FPF QUE ERA MAIS DO QUE UM «NOVO PRESIDENTE» DA FPF (COM A REVOLUÇÃO DE ABRIL À ESQUERDA»
Com os militares do MFA já prontos para o golpe de 25 de abril, a primeira página de A BOLA de 18 de abril de 1974 fez-se em mais um sinal sinal (em parangonas) da «vida nova na FPF» – sublinhando-o assim: com um «novo presidente que é presidente novo». Jorge Humberto Fagundes era, porém, mais do que um «novo presidente» que era «presidente novo» – pois secretas não eram (bem pelo contrário) as suas ligações à Ditadura que estava a esfarelar-se.
Tinha, então, 37 anos e, na sua primeira grande entrevista em A BOLA (após a tomada de posse), abriu assim (a Cruz dos Santos) a sua linha de apresentação:
– Comecei por ser dirigente do Clube Atlético de Campo de Ourique e, dali, transitei para o andebol, onde fui, sucessivamente, presidente da Associação de Lisboa, presidente da Federação e, durante várias anos, presidente do Congresso.
SE NO PORTUGAL DE CAETANO JÁ NÃO HAVIA COISAS QUE HAVIA NO PORTUGAL DE SALAZAR, AINDA HAVIA O PRESIDENTE DA FPF À VEZ DO BENFICA, DO SPORTING OU DO BELENENSES (E SÓ DESSES TRÊS)
Portugal já não era o regime cujo «chefe» (o Doutor Salazar») fazia do chapéu o seu principal símbolo social nem o país em que se amalgamavam ridículos e proibições amontoavam ridículos e proibições – em que, por exemplo, por causa das suas marcas se fechavam as fronteiras aos Opel Ascona, aos camiões Phoden ou às máquinas Kona Coffee -, passara a ser o país em que se voltaram a poder fazer-se concursos de Misses, com a RTP a transmiti-los como se fossem jogos de futebol, sem que, sequer, se dispersassem feministas em indignação, a manifestarem-se, à porta do Casino, com cartazes dizendo: «Não é este tipo de promoção que nós queremos».
Com vista ao Europeu de futebol de 1972, a FPF desafiara Vítor Santos, chefe de redação de A BOLA (e um dos principais fundadores do CNID) para selecionador nacional – e, não aceitando o convite, voltara Gomes da Silva ao cargo. Durante a campanha, contra a Escócia vira-se já indício de mudança na FPF (ainda sem Fagudes e Pedroto) na «mundanice» que não deixava de dar indício de modernidade e «revolução nos costumes»: Riquita, a angolana que se tornara Miss Portugal, fora de foi de calção curtíssimo e bota de cano até ao joelho dar-lhe o pontapé de saída, ao lado de Eusébio.
E se a Censura (que passara a designar-se Exame Prévio), alargando-lhe a malha, já não ordenava que se pintassem slips ou desenhar soutiens nas fotografias de mulheres em poses eróticas que as revistas mais rebeldes publicavam – o presidente da FPF continuava, porém, a ser designado (em tácito roulement) apenas pelos «três grandes de Lisboa» e foi assim que Jorge Fagundes lá chegou, confessando-o (igualmente a Cruz dos Santos):
– Em relação ao futebol, sou entusiasta e espetador quase desde que me conheço e, nos últimos dois anos, tive de entrar bastante mais a fundo nos seus problemas, porque fui advogado do Sporting e, curiosamente, «adversário» da Federação Portuguesa de Futebol, em diversos «casos», como sejam, por exemplo os de Rui Rodrigues, Fraguito, Ronnie Allen e dr. Pereira da Silva, a interdição do Estádio de Alvalade e, depois, a homologação do resultado desse jogo com o Leixões. Como advogado, representei, também, os futebolistas Paula e Cagica Rapaz e de tudo isto me resultou, como é evidente, a necessidade de passar a conhecer bem a legislação futebolística, no capítulo jurídico…»
QUANDO O DESAFIARAM PARA A PRESIDÊNCIA DA FEDERAÇÃO, FAGUNDES ACHOU QUE O ESTAVAM A DESAFIAR PARA A «PREVIDÊNCIA DA FEDERAÇÃO»
Outra ligação ao futebol estava-lhe (como já se desvelou) nos genes – e no nome: Jorge Barreto Fagundes, no Barreto de Januário e a Cruz dos Santos, não deixou, no entanto, de confessá-lo também:
– Não esperava ser convidado pelo Sporting para este cargo. E até aconteceu o curioso caso de, quando o assunto me foi referido pelo telefone, eu ter compreendido «previdência da Federação», em vez de «presidência da Federação», E, já agora, a propósito, veja a coincidência, não menos curiosa: — neste telegrama de felicitações que aqui vê e que hoje mesmo recebi de pessoa amiga, houve o mesmo lapso também está escrita a palavra «previdência» em lugar de «presidência». O convite foi para mim, portanto, uma surpresa. E, embora me sentisse honrado com a distinção, a minha primeira reação foi decliná-lo. E porquê? Fundamentalmente, por se me afigurar difícil a conciliação da minha atividade profissional com um razoável desempenho do cargo. Por falta de tempo, claro está. E isto, porque sabia e sei o que se passa no andebol, onde um dirigente entra cheio de ideias, disposto a fazer isto e mais aquilo, e depressa verifica que tem de gastar boa parte do tempo de que dispõe a escrever cartas e ofícios e entregue a outras tarefas que não são, propriamente, as que devem competir a um dirigente. Houve, porém, quem me fizesse ver que o quadro do fator-tempo não era tão negro quanto eu o imaginava. E, se foi isso que me levou a aceitar o convite, hoje posso afirmar que os meus receios eram, realmente, infundados por completo. Estou muito satisfeito com a organização administrativa da Federação Portuguesa de Futebol, que me vem transmitindo a sensação de estar, realmente, à altura das necessidades e que, com a sua eficiência, bastante simplifica a função dos dirigentes. Vou lá todos os dias, como não pode deixar de ser, porque há assuntos que exigem uma presença efetiva. Mas, em regra, uma ou duas horas diárias é quanto me basta para isso. Os outros assuntos, o trabalho de planificação, digamos assim, faço-o e casa ou no escritório, porque não é forçoso fazê-lo na Federação…
A FINAL DA TAÇA SEM AMÉRICO TOMÁS (O PRESIDENTE DA REPÚBLICA QUE ANTES DE SÊ-LO FOI PRESIDENTE DO BELENENSES) E SEM O PRESIDENTE DA… FPF
Um dos diretores de Jorge Fagundes era… Marcelo Rebelo de Sousa – e, ao chegar-se a 25 de abril de 1974, apercebendo-se de movimentações militares, a PIDE (já denominada DGS) pôs Marcello Caetano (que sucedera a Salazar na Presidência do Conselho) à guarda da GNR no Carmo. O seu comandante era o coronel Ângelo Ferrari que, indicado pelo Benfica (pois sim, já era assim…) fora presidente da FPF entre 1954 e 1957. Deixando o quartel rendido a António de Spínola, Caetano haveria de confidenciá-lo:
– O coronel Ferrari acusou toral incapacidade para desfazer o cerco do capitão Salgueiro Maia. Telefonava para todos os Batalhões a assegurar-se de que estavam prontos e às ordens, dizia-me que as respostas eram afirmativas, olhava para mim com ar triunfante, mas não movimentava as tropas, não fazia nada. Uma personagem ridícula, apalhaçado…
Pode dizer-se que sim, que foi talvez o primeiro capricho do destino na revolução: na primeira final da Taça de Portugal disputada em democracia (naquela em que o Sporting ganhou ao Benfica por 2-1, após prolongamento), estando, no Jamor, António de Spínola como Presidente da República e Guilherme da Palma Carlos (que fora largos anos presidente da Assembleia Geral do Sporting e ganhara notoriedade como defensor de presos políticos) como Primeiro-Ministro (o que nunca acontecera com António Oliveira Salazar ou Marcello Caetano quando eles eram Presidentes do Conselho) – por lá não apareceu Jorge Fagundes. A razão explicou-a em A BOLA do dia seguinte: «Sou patrono do secretário-geral do MRPP, José Luís Saldanha Sanches, ainda detido no Forte de Elvas, e estive todo o fim-de-semana a trabalhar no processo para a sua imediata libertação».
Libertado de Caxias (a 27 de abril de 1974), Saldanha Sanches voltara à cadeia à cadeia, acusado de publicar no Luta Popular, jornal do MRPP (de que era dirigente) artigo considerando que o MFA era «fascismo de luva branca» e incitando «soldados à deserção». Antes estivera em «ação revolucionária» no Cais do Conde de Óbidos a tentar boicotar partida de contingente para Angola, gritando palavras de ordem que ficariam famosas: «Nem Mais Um Soldado para as Colónias!» E era dessas suas «revolucionárias ações» que o «revolucionário presidente da FPF» o defendia, faltando-lhe tempo até para subir à Tribuna de Honra e entregar a Vítor Damas a primeira Taça de Portugal disputada em democracia.
Durante o seu período de resistência à ditadura, Jorge Fagundes (que no dia da sua morte Francisco Teixeira da Mota sublinharia assim: «Era um homem da esquerda não alinhada radical, uma pessoa profundamente generosa, muito leal e intuitiva e com um enorme sentido de humor») manteve forte também ligação a Guilherme da Palma Carlos (com quem partilhou, sempre aguerrido e apaixonado, a defesa de presos políticos nos Tribunais Plenários) – e pertencendo ao MDP/CDE participara ativamente nas eleições de 1969 obviamente como «candidato de oposição».
LENDA OU NÃO, A HISTÓRIA DO TIO AVÔ QUE PÔS O LEÃO AO LADO DO MARQUÊS NA ESTÁTUA
Para além de advogado de Saldanha Sanches, após o 25 de Abril deu aulas na Faculdade de Direito de Lisboa e, depois, também defendeu militantes do Partido Revolucionário do Proletariado/Brigadas Revolucionárias (como Isabel do Carmo e Carlos Rodrigues, os seus dois principais rostos). Integrando o Conselho Superior da Ordem dos Advogados entre 1993 e 1998, meses antes da sua morte (a 7 de julho de 2010) o Bloco de Esquerda (que ajudara a fundar em 1999) lançou-o na sua lista de candidatos às Autárquicas de 1999 em Lisboa.
Quem o conhecia bem ouvira-o contar, vezes sem conta (sem tirar poalha do seu sentido de humor) a história (que podia ter já ou não um tracinho de lenda): que, sendo um seu «tio-avô» o responsável pelo projeto do Monumento ao Marquês de Pombal (cuja estátua coube a Francisco dos Santos, também casapiano da primeira vitória de uma equipa portuguesa ante ingleses, como Januário Barreto e que, depois de ter jogado pelo Sport Lisboa e pela Lazio, também jogou pelo Sporting) ele «arranjara maneira de colocar um leão ao lado do Marquês na estátua, quando a ideia original era colocar-lhe apenas o primeiro-ministro de D. José».
O tal «tio-avô» era António Couto, o «mais ilustre e o melhor jogador» que José Alvalade fora desafiar ao Sport Lisboa e que ainda a jogar futebol subiu a relator do Conselho Fiscal. Andou, depois, pela vice-presidência da Assembleia Geral liderada por Queirós dos Santos (outros dos dissidentes do Sport Lisboa e igualmente integrante da equipa do Casa Pia que bateu os ingleses do Carcavelos em janeiro de 1898) e pela vice-presidência da Comissão Administrativa presidida por Mário Pistacchini em 1918) – e, tendo morrido a 3 de julho de 1946, António Couto era, então, o sócio nº 1 do Sporting Clube de Portugal.